Gui Garrido: Como se faz um festival com muitas portas?

Na procura incessante pelos efeitos viciantes da prática artística, o Gui Garrido não encontrou apenas um sítio onde pudesse ficar. Pelo contrário, descobriu muitos. De bailarino e coreógrafo, a colaborador no festival Tremor até diretor artístico do festival À Porta, este “biscateiro das artes”, como o próprio se autointitula, é um incomensurável conjunto de possibilidades numa pessoa só.

Os primeiros passos foram dados em tempos de escola. Estudou artes plásticas nas Caldas da Rainha e, aos poucos, entrou no campo das artes performativas. Simultaneamente, entre viagens solitárias, a música foi assumindo uma posição cada vez mais destacada. Sempre disse que as músicas seriam as minhas melhores amigas, no sentido que eram as minhas confidentes e conselheiras. A afinidade tornou-se cada vez mais próxima e nos últimos três anos, a mudança não conseguiu esperar mais. Há aquela música que gosto de fazer, muito informal, no meu estúdio ou com uma banda que tenho com o António Pedro Lopes, Melhor Amigo. Nos últimos tempos, tenho estado mais numa de conseguir proporcionar que os outros toquem. Isto é o que me interessa bastante.

Chama-lhe “egoísmo generoso”, transparecendo totalmente esse espírito naquilo que organiza, cria ou propõe. Neste momento, estou a trabalhar nesta direção, na criação de projetos, na curadoria dos festivais e na consultoria artística relacionada com a música. Não esquecendo as restantes expressões artistas, claro que continuo interessado pela dança e pelas artes plásticas, mas a música acaba por ser um ponto que cria uma grande coesão para mim.

De repente, vê-se perante as responsabilidades de ser o diretor artístico do festival À Porta. Esta foi a 3ª edição e tem crescido de ano para ano, o que é bastante bom. Estive 10 anos na dança e correu-me super bem, mas de repente tive assim uma vontade de voltar a agitar a minha vida.

A multidisciplinaridade está no âmago deste festival desde o inicio, muito embora a música se cumpra como o grande componente do evento. Isso surgiu um ano depois do meu filho nascer, explica o Gui. Passei mais tempo por aqui, a tocar os meus instrumentozinhos e houve uma vontade de fazer alguma coisa cá em Portugal, porque na verdade passava a maior parte do tempo fora. No desejo de regressar às suas raízes, começou a refletir sobre a potencialidade de Leiria e concluiu que existe uma série de entidades culturais que acabam por ter um movimento associativo um bocado engraçado.

Segundo o próprio, a expressão da música é muito maior nos arredores do que propriamente no centro desta cidade. Em Leiria existem entidades como a Fade-In, que organiza o Entre-Muralhas há anos ou a Omnichord Records, que tem assim uma série de bandas a crescer a nível internacional. Não existe um espaço de concertos em Leiria, mas tens imensas bandas por aqui. Então havia essa vontade de ir ocupado outros centros e de mostrar isto.

O À Porta começou por ser uma proposta cuja estrutura, de certa forma, fosse de encontro aos seus gostos. A passagem de 2013 para 2014 foi um momento de transição da minha vida. Então, quando apresentei as áreas artísticas nas quais eu estava interessado, seriam todas aquelas que eu estivesse sempre atraído, exceto aquela em que eu trabalhava profissionalmente, a dança.

Música, artes visuais, infantojuvenil e gastronomia são as quatro maiores e principais áreas. Nas suas palavras, o festival acontece do íntimo para o geral, do pequenino para o maior, começando precisamente com os singulares jantares temáticos, qual experiência romântica. Tenho um profundo respeito pelo estar à mesa e não queria que fosse um jantar normal. Por exemplo, logo no primeiro ano, tivemos um jantar chinês com a comunidade chinesa que estava em Leiria. Para aguçar o apetite dos melómanos mais gulosos, a sobremesa tem a forma de um concerto. Apetecia-me proporcionar um momento com um grupo muito restrito de pessoas e que acabam por ter uma experiencia completamente diferente.

Nesta panóplia de manifestações artísticas pretendia-se espicaçar Leiria com uma série de atividades que por norma ainda não estão muito incutidas. Olhemos para a Rua Direita, uma das ruas principais do festival e que antigamente foi uma artéria nobre para o comércio, à semelhança de outras cidades, até o abandono instalar-se. A solução descoberta? “Ocupar” estas lojas e mostrar ao público toda a sua capacidade, através de diversas intervenções de artistas plásticos ou de workshops direcionados para o público infantojuvenil.

A nível de música, ecleticamente falando, Gui é confrontando com o obstáculo da sustentabilidade que impossibilita, para já, alargar o espetro. Ainda não consigo proporcionar muitas das apresentações que gostaria, porque não há budget para isso. Adorava ser milionário para conseguir pagar justamente a todos os artistas com quem acabo por colaborar, diz entre risos. No entanto, no processo de crescimento procura-se constantemente a intersecção entre as artes. Acredito profundamente na profissionalização das artes e tenho um grande respeito nisso.

Foi no contexto musical que Gui e o Carlos Bb se cruzaram pela primeira vez. * O Afonso Rodrigues (Keep Razors Sharp, Sean Riley & The Slowriders) e eu já éramos amigos e isso ajudou a trazer os Keep Razors Sharp a tocarem cá. Foi um concerto absolutamente arrebatador, estava tudo ao rubro. Este ano vieram os The Poppers, os Sean Riley & The Slowriders e os Them Flying Monkeys, que gravaram no Blacksheep Studios*.

Na feliz coincidência, Gui já acompanhava o trabalho da Sara Feio, muito antes de saber que estava casada com o Bb, refere. E acabou por ser uma das ilustradoras presentes este ano. Esta é uma grande família.

A vontade de teste é constante, sobretudo num festival tão recente. Tenho perfeita noção do nosso impacto. Não estamos no meio rural nem numa cidade cosmopolita. Estamos em Leiria que é uma cidade com a importância que tem, mas acho que sem dúvida temos espaço para crescer. Graças à ideia de unir as gentes e as suas valências, nasceu assim um dos eventos portugueses mais auspiciosos da atualidade, a par dos muitos outros que germinam no nosso país. Um brinde a todos os festivais que se esfoçam e que tratam bem o seu publico e os seus artistas e que acima de tudo têm um profundo respeito e um carinho enorme em querer apresentar o melhor e com as melhores condições possíveis. Brindemos juntos!

Texto: Teresa Melo
Fotografia: 1- Gui Garrido; 2- António Pedro Lopes, 3 e 4- Diogo Costa

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