Vera Marmelo: “Sou constantemente apanhada a olhar”

Existem olhos que vêem. Outros que observam. Os da Vera Marmelo assinam como dois muito atentos. Deixam-se levar pela observação porque lhes interessam a luz, os lugares estranhos e também os mais comuns. O fascínio de uma cidade que é meio industrial, meio rio. Todas as vivências juntas. A Vera é a fotógrafa do Barreiro que se mistura com os músicos, os públicos, os palcos e as paisagens.

“Sou constantemente apanhada a olhar, porque o que mais faço é olhar para tudo”, explica. “Às vezes pareço aqueles velhinhos com as mãos atrás das costas a olhar para as coisas. Estou constantemente à procura de cenários onde consiga encontrar uma história na minha cabeça”. Porque ressalta-lhe o deslumbramento pelas pessoas e pela sua substância, as imperfeições, a circulação. “The way you carry yourself, ou seja, a maneira como te mexes, como colocas as mãos. Interessa-me muito o estudo do movimento para perceber o que é natural para seres fotografado”. São as características mais invulgares que se tornam atraentes: primeiro para os seus olhos, logo para as lentes.

Acontece que Vera acabou por dedicar mais tempo a fotografar sítios específicos que são os estúdios de música, as salas de ensaio e as de gravação, os concertos. Começou por explorar o meio músical da sua cidade, numa altura em que acompanhava tudo o que acontecia num espaço no Barreiro, o El Matador. E foi aquele concerto em 2004 dos lisboetas Jesus The Misunderstood que tomou o pulso – e o impulso. Como não lembrar?

Na verdade, nas suas palavras, não há qualquer fascínio na criação das imagens, mas antes na aproximação daquelas pessoas que faziam algo que ela admirava e reconhecia toda a importância. Vera cresce como fotógrafa entre as dinâmicas de uma urbe industrial arrojada pela criatividade. Mais do que se cruzar com músicos, encontrava pessoas que pensavam a cultura de uma maneira muito mais abrangente e que acabavam, muitas vezes, por passar-lhe essa visão. “A importância de alguém abrir um estúdio com ensaios gratuitos a adolescentes até aos 18 anos numa cidade como o Barreiro e o facto disso ter feito com que muitas bandas aparecessem. Da mesma forma, o impacto naquela cidade em ter um gabinete da juventude que mantinha uma garagem aberta para o pessoal fazer os concertos que quisesse e que tinha vontade de ajudar os miúdos a fazer música”.

Desde então, os concertos vividos já são tantos. Com o passar do tempo, percebeu que a preferência pelos eventos pequenos superava os de maior dimensão. “É mais valioso para mim estar presente na segunda edição de um festival como o Tremor que contribui para que toda uma ilha ganhe outra força. Estar presente desde o início na vida de músicos em quem acredito, que fazem cenas que acho muito bonitas e conseguir chamar pessoas até eles. Fico mais contente por sentir-me querida nesses sítios, do que fazer o jogo da rabia num festival grande, rodeada de imensos fotógrafos que vão fazer as mesmas imagens que eu. E isto pode ser uma coisa muito anti-profissional, não é?”.

Tanto lhe faz ou “isto é só um jogo de egos”, diz. Talvez explique os 15 anos a fotografar inssessantemente o OUT.FEST, os 11 anos a acompanhar o Barreiro Rocks e o Tremor há 5 anos. Somam-se os incontabilizaveis concertos na Zé Dos Bois (ZDB) e na Casa Independente.

Se houvesse distinção para a figura mais retratada entre 2014 e 2016, ganharia o baterista Gabriel Ferrandini. Logo a seguir vem o pianista Tiago Sousa e o início da editora Merzbau. Saltam à vista os cinco anos em digressão com os Orelha Negra. A Angel Olsen no terraço da ZDB. O Thurston Moore e a fotografia que fez capa de disco. Depois há as paisagens e os retratos dos amigos. E é esta amálgama de sítios, tons e personalidades que narram um percurso que supera 10 anos.

Mais recentemente, foi a Alemanha ver a actuação da Chelsea Wolf e logo na primeira data, a cantora partilhou uma fotografia sua no Instagram. “Fiquei histérica! Mas a grande questão aqui não é o número de seguidores que posso ganhar com isso, é pensar que adoro a música dela e de alguma forma conseguiu rever-se naquelas imagens”. Porque quando é algo muito estudado, deixa de funcionar. “Hoje em dia, muitos fotógrafos com valor são ultrapassados por redes sociais fortes cuja missão principal não é a fotografia. Estamos a ser atropelados por esta nova forma de viver na internet, criar conteúdos e estar sempre presente”.

A regra mantém-se: a pressão nível zero, porque sempre trabalhou assim. Na altura quando ainda fotografava com filme, Vera chegava a casa, revelava os rolos, deixava-os pendurados a secar durante a noite. No dia seguinte digitalizava as fotografias e publicava na internet à hora do almoço. “Neste momento, é tudo mais fácil. Quando chego a casa, edito as fotografias e antes de me deitar já estão online. Então há muita gente que brinca e que me diz “antes de me deitar, ainda vou à net ver as tuas fotos porque sei que já lá estão”. E não é um esforço. É uma cena natural e que faço super na boa”.

Enquanto que o concerto nos embala e nos faz esquecer a roupa colada ao corpo, Vera quase invisível, fotografa o pulsar humano no coração do público. Admite que é uma questão de não saber fazer de outra maneira porque a única pessoa que tem de superar é a si própria. “No momento em que deixo de fazer este exercício de fazer imagens para mim, estou feita, porque começo a não saber fotografar”. Circula e não descarta nenhum pormenor quando se trata de mostrar aquilo que quer mostrar: nós em diálogo com a música.

podes acompanhar o trabalho da Vera Marmelo aqui: http://veramarmelo.pt

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por: Teresa Melo
fotografia: Vera Marmelo

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