Isilda Sanches: “Gosto da cena mais instintiva e caótica”

Isilda Sanches que tem a voz na rádio. Que também é dj. Que criou a Oxigénio e é hoje locutora e programadora na Antena 3. Que é militante e resistente da música. Isilda Sanches move-se pelo ritmo, pela intuição e pela dicotomia cabeça-ponta da língua. Tem um jeito muito próprio de lidar com as expectativas. As ideias sónicas que se transformam em tangentes selvagens, mas encantadoras. Isilda Sanches escuta primeiro para ser exacta nas mixtapes, mesmo quando pensa que se enganou. O desconhecido agita os melómanos.

O mundo de Isilda é muito próprio. “Sou uma rock chick”, define-se entre risos. Em miúda, fez-se fã dos The Cramps, dos Bauhaus, de Nick Cave, dos The Birthday Party e de Sonic Youth. Em 1991, quando saiu o Screamadelica dos Primal Scream, sentiu um arrepio na espinha. Era aquilo que queria ouvir. Deixou-se guiar pelos mestres radialistas António Sérgio, Aníbal Cabrita e Ricardo Saló e “o meu gosto musical e a minha cultural geral foram muito construídas por causa das sugestões que apanhava dessas pessoas que faziam rádio”.

Na mistura inebriante entre a curiosidade e o conhecimento, foram criadas as condições para construir ao longo dos anos um espaço potencialmente forte para os ouvidos portugueses. “Temos de ser bons escutadores, mas sobretudo tentar que nos escutem”, revela. “Ter consciência de que quem está do outro lado tem de achar que o que estamos a dizer é interessante e isso é, às vezes, o mais importante”.

Nos corredores das rádios há mais de 15 anos, Isilda é transparente na sua posição: não quer pôr o ouvinte numa posição subserviente. “As pessoas podem simplesmente não querer ser guiadas e estarem interessadas em descobrir por si próprias, isso acaba por ser o mais interessante”, diz. “Eu faço rádio essencialmente para divulgar música. A ideia é ser um bocado panfletária da música em que acredito e esperar que do outro lado acreditem em mim ou pelo menos que a informação passe”.

Não é fácil encontrar a descrição verbal mais fiel sobre a atitude do trabalho na rádio, “porque há de facto uma espécie de magia”, afirma a locutora. Os auscultadores, o estúdio, os discos, o turn off do que se está a passar lá fora. “Há uma dimensão meio esotérica em associar umas coisas às outras”. Desenvolvem-se as afinidades de gosto e, sobretudo, a confiança dos ouvintes. O que inicialmente era apenas uma sugestão, acaba por dar credibilidade às seguintes e de repente algo mais profundo começa a construir-se. Uma música a seguir à outra, sem demasiada preocupação com a transição correcta. “Gosto de pensar que tenho uma abordagem parecida com a dos selectors” e, se tiver de contar uma história entre elas, também o faz. Mesmo assim, “acho que não nos podemos colocar assim numa posição demasiado arrogante e até paternalista de quem nos ouve de que estamos aqui para mostrar o caminho, quando há tantos outros”.

Em termos práticos, a verdade é que no programa Muitos Mundos (aos sábados, entre as 0h e as 2h), Isilda sabe bem como nos levar daqui para outras realidades. Vale tudo porque lhe interessa mesmo tudo em todos os estilos. Depois o que acontece é, novamente, as relações. “Sai um disco novo e eu construo as coisas ali à volta. Quando fui a Detroit ver o Jack White, vim tão entusiasmada pelo facto de ter ido àquela cidade que resolvi fazer um programa totalmente dedicado a Detroit. Convidei um músico que vive em Portugal, que é o Jerrald James e que é de lá, para contar um pouco a história. Comecei no John Lee Hocker e acabei no techno”.

No fundo, essa talvez seja mesmo a ordem natural dos factos. Pegar numa coisa e começar a desfiar o novelo que é o do momento. “Podemos planificar, mas nada como estar a sentir a música ali uma a seguir a outra e dar a informação. Há alturas em que consigo encontrar um fio condutor e há outras que não. E há que assumir isso. É preciso é deixar as coisas fluírem. Um batuque agora vai levar a uma descarga latina daqui a pouco e depois não sei. Gosto da cena mais instintiva e caótica”.

Agora, a voracidade do consumo exige que se renovem frequentemente as fontes do entusiasmo. “Todos os dias há um novo herói e todos os dias esse herói é destronado. Todos os dias há um fenómeno e não te agarras a nada. Eu acho que isso é um problema que se põe. Por exemplo, nos headliners dos festivais, quem é que sucede aos The National, aos Arcade Fire, aos LCD Soundsystem, aos Queens Of The Stone Age? Isto do harder-better-faster-stronger não está a dar a oportunidade às bandas novas de crescerem”. Na sua opinião, a facilidade com que nos agarramos aos fenómenos novos “é muito cruel para o último que já está caído no esquecimento. É tudo uma grande amálgama de pequenos projectos que de repente vão devorar-se uns aos outros. Tenho algumas dúvidas sobre o caminho a seguir, mas vejo a situação complicada para quem está a começar ou quem já começou mas não tem o contexto que facilite isso”.

Em Portugal é equivalente, como um contágio, e os músicos têm noção disso porque também não se sabe o que vai acontecer a seguir. “A música portuguesa está a passar um período riquíssimo em todas as áreas, mas continuamos com dificuldade em aparecer em eventos internacionais”. As razões? Continua a imperar o domínio anglo-saxónico e “a seguir os nórdicos que também têm grande impacto no universo pop, por serem países com muito dinheiro e que conseguem dar condições aos seus artistas para criarem espectáculos que lhes permitem ir lá fora”, explica.

Que as justificações não sejam fundamento de desmotivação dos nossos artistas. Para Isilda, tem de haver um espírito de militância, uma espécie de estoicismo para continuar a criar em Portugal. “Somos um país de poetas, por isso é que se calhar ainda há muita gente a dedicar-se à música, mesmo não fazendo dinheiro com ela. É um assunto muito tabu, mas há músicos em Portugal a passarem por situações muito complicadas. É importante falar disso para que as pessoas saibam que os músicos não vivem todos numa redoma nem vivem em famílias com grandes fortunas que lhes permitam ser uns boémios e criativos o resto das suas vidas”.

No entanto, não será a partir dessas situações complicadas que nascem as obras mais incríveis? “Talvez, o que acaba por ser um bocado incongruente. Mas acredito que as pessoas cá continuem com vontade de fazer música. Esta é a minha esperança”.

podes ouvir as emissões completas do programa Muitos Mundos aqui: https://www.rtp.pt/play/p2017/muitos-mundos

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por: Teresa Melo
fotografia: Vera Marmelo

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